segunda-feira, 18 de junho de 2012

Homilia do XI Domingo Tempo Comum

O Reino de Deus é como...
É como a rede lançada ao mar
e como o negociante de pérolas
e como o semeador
e como o dono do campo
e como a semente lançada à terra
e como o pai misericordioso
e como quem descobre um tesouro enterrado
e como as virgens prudentes
e como um senhor que parte e outro que volta,
e como o cedro de que nos fala Ezequiel
e como e como e como...
e como se a cada parábola, cada história, cada imagem fosse mais um elemento de um enorme painel que quantos mais elementos agrega mais definido e límpido se torna.

Mas e se as nossas académicas mentes, treinadas para descobrir mais fundo não se saciarem com a comparação? E se quiserem encontrar, pela boca de Jesus uma resposta conclusiva sobre o que é o Reino de Deus? 
Não iremos mais longe do que mais uma e outra divina demonstração da pedagogia do amor e da liberdade que começará inevitavelmente por: O Reino de Deus é como...
é como se não houvesse palavras para o dizer, cuja inexistência nos obriga a falar mais do que se as houvesse, é como se cada coisa que dizemos ou ouvimos dizer sobre ele nos atirasse à cara que isso ainda é pouco, mas mais não podemos, é como o amor e a fé, é como a saudade e a amizade, é como o partir e o ficar, é como tudo o que importa e que porta em si o mistério do que não nos cabe no peito, mas que também não nos sai pela boca.

Podem os paradigmas cognitivos de Jesus e dos seus mais imediatos destinatários, mais atreitos a comparar do que a definir, ajudar-nos a perceber o porquê de tanta comparação e de tão gritante silêncio no que toca à definição, mas se Jesus, ele mesmo que, só pelo facto de existir e encarnar, é contradição de tudo o que humanamente tem sentido e nexo, não quis contrariar essa mentalidade, esse modo de pensar e entender o mundo, faz sentido que o façamos nós? Fará para alguns, mas para mim, pelo menos hoje, não!
E por isso, resigno-me a uma atitude naif, como quem bebe água da fonte sem se preocupar com as características mineralógicas de semelhante dom, a repetir o exercício de pensar que o Reino de Deus é como...

Voltem comigo à imagem do mosaico. Quem constrói um mosaico procura as pedras necessárias para que, juntas, formem uma imagem que tem em mente, que projectou. O contrário, juntar pedras, cada uma mais linda do que a outra, e esperar que só por serem lindas o seu conjunto resulte em qualquer coisa com sentido, seria tão absurdo como inútil.
Damos por isso a prioridade à iniciativa divina que nos mostra o Seu Reino para a Ele nos conformarmos e com ele nos configurarmos.

Com estas parábolas que hoje a liturgia da palavra nos oferece, sinto-me desafiado a perder-me e a aceitar formar com os outros, não uma réplica ou uma ampliação de mim mesmo e da minha identidade, mas a construir o ícone  que me é dado de forma simples, quase pueril, por parábolas e comparações, mosaico do qual quero ser parte.


Mas a vontade de ser parte deste mosaico, obriga-me a confrontar-me com o antigo axioma de que o que se diz do todo se pode também dizer da parte, e este é um exercício muito mais desconfortável e exigente. Eu sou como o Reino de Deus?
A resposta é um amargo não! Que só não é mais amargo porque é adocicado com o advérbio de tempo “ainda” que o faz resultar em algo igualmente duro, mas incrivelmente menos definitivo: ainda não!

Ainda não sou como o Reino de Deus, porque, apesar de já ter descoberto o tesouro escondido num campo, ainda tento negociar a manutenção de todos os outros dos quais necessariamente me devo desfazer para poder ter de facto o eleito, ainda não porque ainda não sou capaz de confiar tudo àqu'Ele que tudo pode, agindo como se fosse eu a fazer crescer o trigo, ainda não porque a minha vida se assemelha à recolha de lindas pedras sem ter em conta o todo,  em registo autoreferêncial de quem, em vez de dar um passo a trás para perceber a beleza e a grandiosidade do mosaico de que faz parte, chega a pontos de, no limite, se sentir mal empregue na construção de algo diferente de si mesmo.

Se estivesse só, o desespero invadir-me-ia, os braços cairiam sob o peso de tão hercúleo desafio. Não posso, não tenho forças para me transformar tanto, não posso, não tenho forças para elevar a minha natureza decaída, não posso, não tenho forças para chegar sequer a ser a mais pequena e insignificante pedra de tão excelsa imagem.


Mas não estou só, antes de mais Ele que me salvou, está por mim, cada dia da minha vida, com a Sua graça a recordar-me que, apesar de viver neste mundo, a minha identidade é a d’Ele, recebida no baptismo, enxerto n‘Ele que me revigora com a sua seiva e me dá sentido à vida.

Não estou só, porque te tenho a ti, irmão padre, religiosa ou leiga desta casa, porque o Reino de Deus é como tu, quando me mostras, num sorriso ou numa palavra brusca, que enterrei o talento que devia por a render e me desafias a mais e a melhor, contigo sinto-me parte de um mosaico policromado, capaz de mostrar ao mundo mais, muito mais, do que sou capaz de dizer.


Não estou só porque tenho a minha Diocese que dá sentido à distância, o Reino de Deus é como seus os crentes que brotam do mundo como se do trigo da parábola que ainda ecoa se tratasse, sem que tenha feito nada que bastasse para que tal milagre acontecesse no coração de um homem, o de passar da descrença à Fé.


Não estou só porque vejo os que não acreditam e o Reino de Deus é como os incrédulos que me recordam a limitação das palavras e a incoerência dos exemplos.


Não estou só porque absolvo os penitentes e o Reino de Deus é como um pecador que se converte que me faz experimentar a alegria da mulher que, varrendo a casa, acha o dracma perdido.

Toda esta experiência é tensão, “vivida neste corpo, como exilado, longe do Senhor, pois caminho à luz da fé e não da visão clara” - como dizia S. Paulo aos coríntios na segunda leitura - vivo a saudade da vida futura, como exilado mas cheio de esperança, tentando nunca perder de vista a meta para onde caminho: O Reino de Deus donde constantemente somos chamados por Nosso Senhor Jesus Cristo que vive e reina com o Pai na unidade do Espírito Santo. Amén

quinta-feira, 7 de junho de 2012


A fonte


Numa montanha, grande e bela, de vegetação rasa mas diversificada, onde as estações do ano se faziam acompanhar, cada uma, das suas próprias flores, a ponto de ser difícil reconhecer o sítio onde se tinha estado alguns meses antes, havia uma fonte. 


Não corria muito, mas corria sempre. Um fio de água cristalina e fresca à disposição de quem passava e que, quando não era bebida por ninguém, transbordava do caldeiro, por ela mesma escavado na rocha, e produzia entre musgos, flores e ervas, um tapete verde intenso que fazia com que fosse difícil distinguir as várias espécies amalgamadas entre si à procuro do melhor lugar.


Desde sempre os homens e mulheres daquela região tinham bebido daquela fonte sem preocupações, habituados que estavam à sua constância, nunca tinham sentido a necessidade de a armazenar, bebiam de cada vez que passavam, certos de que ali estaria na vez seguinte gratuita e disponível, como sempre.

Um dia, a meio da manhã, um dos habituais fruidores, ao chegar perto da fonte, apercebeu-se de uma presença estranha. Um carro no caminho mais próximo com um logótipo de um laboratório de análises, um capacete branco que mexia freneticamente, uma parafernália de frascos e frasquinhos todos aceticamente conservados para não inquinarem as amostras que eram recolhidas com laboriosa ciência, denotavam um interesse pela fonte, até então virgem do olhar científico que só acredita no que demonstrado se lhe apresenta.

O freguês, de modos rudes como a montanha, mas de intensões delicadas como as flores, cumprimentou e dirigiu-se à fonte para dar duas goladas antes de seguir o seu caminho, mas foi interrompido pelo grito estridente do forasteiro: “-mas o que é que o senhor está a fazer?” “- a beber água...” respondeu num tom que tanto podia ser de espanto como de gozo, perante pergunta tão despropositada.
“- O senhor sabe que essa água não foi analisada?”
“-E o senhor sabe que bebo dela desde que me lembro...?”
“- Essa água pode ter: Vibrio cholerae, Shiggella sempre, Salmonella typhi, Vírus da Hepatite do tipo A, Salmonella paratyphi A, B e C, Proteus sp., Tipos enteropatogênicos de Escherichia coli...”
“-ha, ha...”
   “-O senhor pode apanhar Cólera, Febre tifóide, Hepatite infecciosa, Febre paratifóide, Gastroenterite, Leptospirose, Disenteria Bacilar e até Diarreia infantil”
Muito por não ter entendido quase nada do que o homem lhe dizia com cadência de mó de moinho, mas sobretudo pela única que tinha entendido, larga uma sonora gargalhada e diz-lhe: “-Diarreia infantil? -Aos 80?  -Essa sempre tinha que ver...”
Bebeu a água como tinha previsto com mesma confiança de sempre e, saciado, seguiu o seu caminho.


Os ritmos na montanha mantiveram-se, depois de terminadas as conversas em torno de tão bizarra aparição, cujas adjectivações e enredos eram tantos e tais que se em vez de “o inginhêro” dissessem "o staterreste", a fábula continuava a fazer sentido em si mesma e a parecer exagerada, quando confrontada com o mundo que a rodeava.


Muito tempo depois, o mesmo transeunte vislumbrou ao longe o mesmo logótipo que tinha visto no carro e no fato de macaco do “inginhêro”, mas agora muito maior. 
Tudo o que tinha se parecia com um carro, como os que tinha visto por aqueles caminhos, mas era muito maior, e o que lhe vinha à ideia eram os comboios de que tinha ouvido falar mas que nunca tinha visto... mas, segundo lhe tinha explicado o seu professor da 4ª classe, quando o obrigava a decorar os rios e os seus afluentes e as linhas de caminho de ferro, estas chamavam-se assim porque eram tiras de ferros muito compridas e os comboios deslizavam sobre elas suavemente... mas aqui não existiam tais tiras de ferro, umas réguas ainda maiores do que aquelas com que era reprimida a pueril irreverência...
Continuou a caminhar, mais preocupado estava em esconder a suas dúvidas do que em mostrar boa cara a quem rodeava a fonte que se sentiu surpreendido com uma voz cristalina e juvenil de uma jovem que com um molho de folhas nas mãos o abordou: “-bom dia, estaria disponível para colaborar connosco numa pesquisa que estamos a fazer sobre o uso das fontes nas regiões interiores e inóspitas?” “-sim, sim, mas deixe-me lá beber um gole primeiro, que já a atendo...” e lá foi respondendo à perguntas que ela foi fazendo, mas o que ele queria era uma reposta, que coisa era aquela, mas levado de brios, nunca perguntou e manteve sempre o olhar altivo de quem não se surpreende com nada.
“-e quantas vezes aqui vem?”
“-uma”
“-por dia, por semana, por mês?”
“-sei lá menina, vez uma vez de cada vez!”
“-e quantos dec...” neste exacto momento, a atenção desviou-se do que lhe era perguntado em direcção à boca do “inginhêro” que dizia para o outro: “Com este camion-cisterna cheio já podemos ter uma ideia aproximadas das...”
Era um camion, desta vez é que ninguém ia acreditar nele. Da outra vez era só um e um carro e meia milha de palavras indecifráveis, desta vez eles até tinham um camion....
Invertendo os papéis de estudioso/objecto de estudo, o idoso perguntou: “- mas o que é que vomecês aqui andam a fazer?”
“-A estudar a fonte e o uso da fonte, não podemos deixar que as populações se arrisquem a beber de uma água que ainda ninguém estudou convenientemente.” Respondeu  o “inginhêro” da outra vez, com as mesmas certezas e tom conclusivo.
“-e o que é que isso interessa?”
“-é a sua saúde que está em jogo, o seu bem estar. Sabia que há estudos que afirmam que a longevidade está intimamente ligada à qualidade da água que bebemos?”
“-então esta deve ser boa...”
“-sim, mas é preciso conhecer a fundo as suas características minerais e orgânicas, se serve de canal a agentes infecciosos e quais, e se não, o porquê.”
Já completamente desligado das respostas técnicas, das quais ouvia metade e nada percebia, perguntou: “-vossa senhoria acredita em Deus?”
“- sim, mas isto não tem nada que ver com a fé, isto é ciência pura...”
“-mas acredita ou não, homem?” num tom claramente impaciente.
“-sim, mas...”
“-Então, é assim. Lá na freguesia há um cura. Ele sabe muitas coisas de Deus e do Diabo a sete - leu livros e tudo... estudou no seminário e depois ainda vai a uns encontros onde ainda aprende mais. Ele quer saber essas coisas sobre Deus...
A mim basta-me saber que Ele lá está e que quando passo por Ele, Ele me dá o que tem para dar. É assim com a fonte, amigo, vossa senhoria poderá perder ai o seu rico tempo a estudar tudo e mais alguma coisa, saberá o que é e o que não é... no fim, eu passo e bebo água.
-Já agora, antes de arrumar a sua turgia e abalar, beba uma pouca de água, não vá dar-se o caso de ter um curso de teologia e nunca ter rezado um Padre-nosso.”

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Da cabeça aos pés ou de como nos pormos a jeito…


Começa hoje, é hoje que começa o tempo favorável…
Com as cinzas que me marcam a fronte e me recordam, aquilo que procuro nunca me esquecer: acreditar no Evangelho é um processo contínuo de conversão.
Começam 40 dias, que não o são bem e que precisam de muitas contas para que o possam de facto ser…
40 dias de quê? Não, antes 40 dias porquê?
Porque o povo de Deus, o da primeira aliança, precisou de 40 anos para atravessar o deserto, ou melhor, para, como povo, alcançar a terra prometida…
Porque Cristo esteve 40 dias no deserto e para lá foi conduzido pelo Espírito “a fim de ser tentado”…
Quarenta dias a pormo-nos a jeito da tentação… algum dia me apeteceu mais carne do que hoje? Conduzidos pelo espírito a fim de sermos tentados, e termos fome e ficarmos vulneráveis mas prevenidos que ele tentará…
Tentará seduzir-nos pelo  PODER, “transforma esta pedra em pão” dir-nos-á.
Tentará seduzir-nos pelo TER, “se… tudo o que vês será teu…” com uma voz sibilante
Tentará seduzir-nos pelo APARECER, “atira-te… os anjos virão para te segurar”, com voz de quem te está a lembrar uma coisa boa que tu sabias mas que te tinhas esquecido…
E a cada tentativa ouvirá sempre a mesma resposta, SIM ao Deus que é mais importante para  a minha subsistência do que o próprio pão.
SIM, ao Deus que me quer tanto que dá sentido que só a Ele adore e preste culto.
SIM ao Deus que merece da minha parte uma atitude tão fiel como a d’Ele para comigo e a quem não desafio, seja sobre que motivo for.
E quando ele me tiver tentado com toda a espécie de provação, afastar-se-á de mim “por um tempo” …
A Quaresma que começa com as cinzas, sinal forte da minha debilidade, mas que terminará com a água com que Jesus lavou os pés aos discípulos… terminará com a água do meu baptismo (re)assumido, refontalizado e revigorado em mais uma celebração festiva e solene do grande acontecimento… o maior, o mais intenso e decisivo: paixão|morte|ressurreição  de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A Quaresma aparece assim encerrada entre dois sinais, o da cinza, na cabeça, e do da água, nos pés, a fazer-me recordar que toda a vida cristã é uma conversão constante do todo que somos, mesmo, da cabeça aos pés.

Longe de casa...