A fonte
Numa montanha, grande e bela, de
vegetação rasa mas diversificada, onde as estações do ano se faziam acompanhar,
cada uma, das suas próprias flores, a ponto de ser difícil reconhecer o sítio
onde se tinha estado alguns meses antes, havia uma fonte.
Não corria muito, mas corria sempre. Um fio de água cristalina e fresca à disposição de quem passava e que, quando não era bebida por ninguém, transbordava do caldeiro, por ela mesma escavado na rocha, e produzia entre musgos, flores e ervas, um tapete verde intenso que fazia com que fosse difícil distinguir as várias espécies amalgamadas entre si à procuro do melhor lugar.
Não corria muito, mas corria sempre. Um fio de água cristalina e fresca à disposição de quem passava e que, quando não era bebida por ninguém, transbordava do caldeiro, por ela mesma escavado na rocha, e produzia entre musgos, flores e ervas, um tapete verde intenso que fazia com que fosse difícil distinguir as várias espécies amalgamadas entre si à procuro do melhor lugar.
Desde sempre os homens e mulheres daquela região tinham bebido daquela fonte sem preocupações, habituados que estavam à sua constância, nunca tinham sentido a necessidade de a armazenar, bebiam de cada vez que passavam, certos de que ali estaria na vez seguinte gratuita e disponível, como sempre.
Um dia, a meio da manhã, um dos
habituais fruidores, ao chegar perto da fonte, apercebeu-se de uma presença
estranha. Um carro no caminho mais próximo com um logótipo de um laboratório de
análises, um capacete branco que mexia freneticamente, uma parafernália de
frascos e frasquinhos todos aceticamente conservados para não inquinarem as amostras
que eram recolhidas com laboriosa ciência, denotavam um interesse pela fonte,
até então virgem do olhar científico que só acredita no que demonstrado se lhe
apresenta.
O freguês, de modos rudes como a
montanha, mas de intensões delicadas como as flores, cumprimentou e dirigiu-se
à fonte para dar duas goladas antes de seguir o seu caminho, mas foi
interrompido pelo grito estridente do forasteiro: “-mas o que é que o senhor
está a fazer?” “- a beber água...” respondeu num tom que tanto podia ser de espanto
como de gozo, perante pergunta tão despropositada.
“- O senhor sabe que essa água não foi
analisada?”
“-E o senhor sabe que bebo dela desde que me lembro...?”
“- Essa água pode ter: Vibrio
cholerae, Shiggella sempre, Salmonella typhi, Vírus da Hepatite do tipo A,
Salmonella paratyphi A, B e C, Proteus sp., Tipos enteropatogênicos de
Escherichia coli...”
“-ha, ha...”
“-O
senhor pode apanhar Cólera, Febre tifóide, Hepatite infecciosa, Febre
paratifóide, Gastroenterite, Leptospirose, Disenteria Bacilar e até Diarreia
infantil”
Muito por não ter entendido quase
nada do que o homem lhe dizia com cadência de mó de moinho, mas sobretudo pela
única que tinha entendido, larga uma sonora gargalhada e diz-lhe: “-Diarreia
infantil? -Aos 80? -Essa sempre tinha que
ver...”
Bebeu a água como tinha previsto com mesma confiança de sempre e,
saciado, seguiu o seu caminho.
Os ritmos na montanha mantiveram-se, depois de terminadas as conversas em torno de tão bizarra aparição, cujas adjectivações e enredos eram tantos e tais que se em vez de “o inginhêro” dissessem "o staterreste", a fábula continuava a fazer sentido em si mesma e a parecer exagerada, quando confrontada com o mundo que a rodeava.
Muito tempo depois, o mesmo transeunte vislumbrou ao longe o mesmo logótipo que tinha visto no carro e no fato de macaco do “inginhêro”, mas agora muito maior.
Tudo o que tinha se
parecia com um carro, como os que tinha visto por aqueles caminhos, mas era
muito maior, e o que lhe vinha à ideia eram os comboios de que tinha ouvido
falar mas que nunca tinha visto... mas, segundo lhe tinha explicado o seu
professor da 4ª classe, quando o obrigava a decorar os rios e os seus afluentes
e as linhas de caminho de ferro, estas chamavam-se assim porque eram tiras de ferros muito compridas e os
comboios deslizavam sobre elas suavemente... mas aqui não existiam tais
tiras de ferro, umas réguas ainda maiores do que aquelas com que era reprimida
a pueril irreverência...
Continuou a caminhar, mais
preocupado estava em esconder a suas dúvidas do que em mostrar boa cara a quem rodeava
a fonte que se sentiu surpreendido com uma voz cristalina e juvenil de uma
jovem que com um molho de folhas nas mãos o abordou: “-bom dia, estaria
disponível para colaborar connosco numa pesquisa que estamos a fazer sobre o
uso das fontes nas regiões interiores e inóspitas?” “-sim, sim, mas deixe-me lá
beber um gole primeiro, que já a atendo...” e lá foi respondendo à perguntas
que ela foi fazendo, mas o que ele queria era uma reposta, que coisa era aquela, mas levado de brios, nunca perguntou e manteve sempre o olhar altivo de
quem não se surpreende com nada.
“-e quantas vezes aqui vem?”
“-uma”
“-por dia, por semana, por mês?”
“-sei lá menina, vez uma vez de
cada vez!”
“-e quantos dec...” neste exacto momento, a atenção desviou-se do que lhe
era perguntado em direcção à boca do “inginhêro” que dizia para o outro: “Com
este camion-cisterna cheio já
podemos ter uma ideia aproximadas das...”
Era um camion, desta vez é que ninguém ia acreditar nele. Da outra vez era
só um e um carro e meia milha de palavras indecifráveis, desta vez eles até
tinham um camion....
Invertendo os papéis de estudioso/objecto de estudo, o idoso perguntou: “- mas o que é que vomecês aqui andam a
fazer?”
“-A estudar a fonte e o uso da
fonte, não podemos deixar que as populações se arrisquem a beber de uma água
que ainda ninguém estudou convenientemente.” Respondeu o “inginhêro” da
outra vez, com as mesmas certezas e tom conclusivo.
“-e o que é que isso interessa?”
“-é a sua saúde que está em jogo,
o seu bem estar. Sabia que há estudos que afirmam que a longevidade está
intimamente ligada à qualidade da água que bebemos?”
“-então esta deve ser boa...”
“-sim, mas é preciso conhecer a
fundo as suas características minerais e orgânicas, se serve de canal a
agentes infecciosos e quais, e se não, o porquê.”
Já completamente desligado das
respostas técnicas, das quais ouvia metade e nada percebia, perguntou: “-vossa
senhoria acredita em Deus?”
“- sim, mas isto não tem nada que
ver com a fé, isto é ciência pura...”
“-mas acredita ou não, homem?” num
tom claramente impaciente.
“-sim, mas...”
“-Então, é assim. Lá na freguesia
há um cura. Ele sabe muitas coisas de Deus e do Diabo a sete - leu livros e
tudo... estudou no seminário e depois ainda vai a uns encontros onde ainda
aprende mais. Ele quer saber essas coisas sobre Deus...
A mim basta-me saber que Ele lá está e que quando passo por Ele, Ele
me dá o que tem para dar. É assim com a fonte, amigo, vossa senhoria poderá
perder ai o seu rico tempo a estudar tudo e mais alguma coisa, saberá o que é e
o que não é... no fim, eu passo e bebo água.
-Já agora, antes de arrumar a sua turgia
e abalar, beba uma pouca de água, não vá dar-se o caso de ter um curso de teologia
e nunca ter rezado um Padre-nosso.”
Sem comentários:
Enviar um comentário