quinta-feira, 7 de junho de 2012


A fonte


Numa montanha, grande e bela, de vegetação rasa mas diversificada, onde as estações do ano se faziam acompanhar, cada uma, das suas próprias flores, a ponto de ser difícil reconhecer o sítio onde se tinha estado alguns meses antes, havia uma fonte. 


Não corria muito, mas corria sempre. Um fio de água cristalina e fresca à disposição de quem passava e que, quando não era bebida por ninguém, transbordava do caldeiro, por ela mesma escavado na rocha, e produzia entre musgos, flores e ervas, um tapete verde intenso que fazia com que fosse difícil distinguir as várias espécies amalgamadas entre si à procuro do melhor lugar.


Desde sempre os homens e mulheres daquela região tinham bebido daquela fonte sem preocupações, habituados que estavam à sua constância, nunca tinham sentido a necessidade de a armazenar, bebiam de cada vez que passavam, certos de que ali estaria na vez seguinte gratuita e disponível, como sempre.

Um dia, a meio da manhã, um dos habituais fruidores, ao chegar perto da fonte, apercebeu-se de uma presença estranha. Um carro no caminho mais próximo com um logótipo de um laboratório de análises, um capacete branco que mexia freneticamente, uma parafernália de frascos e frasquinhos todos aceticamente conservados para não inquinarem as amostras que eram recolhidas com laboriosa ciência, denotavam um interesse pela fonte, até então virgem do olhar científico que só acredita no que demonstrado se lhe apresenta.

O freguês, de modos rudes como a montanha, mas de intensões delicadas como as flores, cumprimentou e dirigiu-se à fonte para dar duas goladas antes de seguir o seu caminho, mas foi interrompido pelo grito estridente do forasteiro: “-mas o que é que o senhor está a fazer?” “- a beber água...” respondeu num tom que tanto podia ser de espanto como de gozo, perante pergunta tão despropositada.
“- O senhor sabe que essa água não foi analisada?”
“-E o senhor sabe que bebo dela desde que me lembro...?”
“- Essa água pode ter: Vibrio cholerae, Shiggella sempre, Salmonella typhi, Vírus da Hepatite do tipo A, Salmonella paratyphi A, B e C, Proteus sp., Tipos enteropatogênicos de Escherichia coli...”
“-ha, ha...”
   “-O senhor pode apanhar Cólera, Febre tifóide, Hepatite infecciosa, Febre paratifóide, Gastroenterite, Leptospirose, Disenteria Bacilar e até Diarreia infantil”
Muito por não ter entendido quase nada do que o homem lhe dizia com cadência de mó de moinho, mas sobretudo pela única que tinha entendido, larga uma sonora gargalhada e diz-lhe: “-Diarreia infantil? -Aos 80?  -Essa sempre tinha que ver...”
Bebeu a água como tinha previsto com mesma confiança de sempre e, saciado, seguiu o seu caminho.


Os ritmos na montanha mantiveram-se, depois de terminadas as conversas em torno de tão bizarra aparição, cujas adjectivações e enredos eram tantos e tais que se em vez de “o inginhêro” dissessem "o staterreste", a fábula continuava a fazer sentido em si mesma e a parecer exagerada, quando confrontada com o mundo que a rodeava.


Muito tempo depois, o mesmo transeunte vislumbrou ao longe o mesmo logótipo que tinha visto no carro e no fato de macaco do “inginhêro”, mas agora muito maior. 
Tudo o que tinha se parecia com um carro, como os que tinha visto por aqueles caminhos, mas era muito maior, e o que lhe vinha à ideia eram os comboios de que tinha ouvido falar mas que nunca tinha visto... mas, segundo lhe tinha explicado o seu professor da 4ª classe, quando o obrigava a decorar os rios e os seus afluentes e as linhas de caminho de ferro, estas chamavam-se assim porque eram tiras de ferros muito compridas e os comboios deslizavam sobre elas suavemente... mas aqui não existiam tais tiras de ferro, umas réguas ainda maiores do que aquelas com que era reprimida a pueril irreverência...
Continuou a caminhar, mais preocupado estava em esconder a suas dúvidas do que em mostrar boa cara a quem rodeava a fonte que se sentiu surpreendido com uma voz cristalina e juvenil de uma jovem que com um molho de folhas nas mãos o abordou: “-bom dia, estaria disponível para colaborar connosco numa pesquisa que estamos a fazer sobre o uso das fontes nas regiões interiores e inóspitas?” “-sim, sim, mas deixe-me lá beber um gole primeiro, que já a atendo...” e lá foi respondendo à perguntas que ela foi fazendo, mas o que ele queria era uma reposta, que coisa era aquela, mas levado de brios, nunca perguntou e manteve sempre o olhar altivo de quem não se surpreende com nada.
“-e quantas vezes aqui vem?”
“-uma”
“-por dia, por semana, por mês?”
“-sei lá menina, vez uma vez de cada vez!”
“-e quantos dec...” neste exacto momento, a atenção desviou-se do que lhe era perguntado em direcção à boca do “inginhêro” que dizia para o outro: “Com este camion-cisterna cheio já podemos ter uma ideia aproximadas das...”
Era um camion, desta vez é que ninguém ia acreditar nele. Da outra vez era só um e um carro e meia milha de palavras indecifráveis, desta vez eles até tinham um camion....
Invertendo os papéis de estudioso/objecto de estudo, o idoso perguntou: “- mas o que é que vomecês aqui andam a fazer?”
“-A estudar a fonte e o uso da fonte, não podemos deixar que as populações se arrisquem a beber de uma água que ainda ninguém estudou convenientemente.” Respondeu  o “inginhêro” da outra vez, com as mesmas certezas e tom conclusivo.
“-e o que é que isso interessa?”
“-é a sua saúde que está em jogo, o seu bem estar. Sabia que há estudos que afirmam que a longevidade está intimamente ligada à qualidade da água que bebemos?”
“-então esta deve ser boa...”
“-sim, mas é preciso conhecer a fundo as suas características minerais e orgânicas, se serve de canal a agentes infecciosos e quais, e se não, o porquê.”
Já completamente desligado das respostas técnicas, das quais ouvia metade e nada percebia, perguntou: “-vossa senhoria acredita em Deus?”
“- sim, mas isto não tem nada que ver com a fé, isto é ciência pura...”
“-mas acredita ou não, homem?” num tom claramente impaciente.
“-sim, mas...”
“-Então, é assim. Lá na freguesia há um cura. Ele sabe muitas coisas de Deus e do Diabo a sete - leu livros e tudo... estudou no seminário e depois ainda vai a uns encontros onde ainda aprende mais. Ele quer saber essas coisas sobre Deus...
A mim basta-me saber que Ele lá está e que quando passo por Ele, Ele me dá o que tem para dar. É assim com a fonte, amigo, vossa senhoria poderá perder ai o seu rico tempo a estudar tudo e mais alguma coisa, saberá o que é e o que não é... no fim, eu passo e bebo água.
-Já agora, antes de arrumar a sua turgia e abalar, beba uma pouca de água, não vá dar-se o caso de ter um curso de teologia e nunca ter rezado um Padre-nosso.”

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