segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Homilia do Primeiro Domingo de Advento




Esta celebração está repleta de tempo.
Para isso bastaria ser Domingo, o Dia dos dias, o maior entre todos, não porque dure mais, às vezes até parece demorar menos, mas porque nele celebramos o que de maior temos para celebrar, Cristo, todo, mas de forma particularmente intensa a sua ressurreição, intimamente associada à sua morte que aconteceu no Cronos de uma vez por todas e que se repete no Kayros cada vez que em sua memória O fazemos. O oitavo dia, o tempo fora do tempo, que nos recorda que embora passemos grande parte das nossas vidas de olhos postos no chão, leia-se livros, que trabalhamos, a nossa vocação é viver de olhos postos no Céu a que aspiramos.
Está repleta de tempo porque um novo ano litúrgico começa, que nos conduzirá pelo mistério de um Deus que se revela na história, na nossa própria história, na história que fizermos acontecer e que nos fizer acontecer a nós, durante um ano. Não como quem inicia um novo ciclo do que de velho se repete, hermético e sem destino, mas como quem continua a espiral que, de forma lenta e progressiva, nos conduz ao Próprio Deus, enquanto desfrutamos da contemplação, ainda que limitada dos mistérios da nossa salvação.
Está repleta de tempo, pelo tempo forte do advento que nos grita, “Ele virá!” e mais ainda, “o tempo só conta para preparar a ausência dele” prepararmo-nos sem “saber nem o dia nem hora”, porque será um acontecimento dos novos céus e da nova terra, quando estes tiverem desaparecido e com eles o tempo e o espaço que agora nos orientam e nos prendem.
Está repleta de tempo pelos 90 dias que hoje se completam sobre o dia em que entrei nesta casa, do qual ainda ecoam, à mistura com as primeiras impressões, medos e esperanças, restos do “Cala-te!” que nos foi dito na primeira homilia, eco, por sua vez da boa nova proclamada.
Está repleta de tempo porque o convite a presidir está directamente ligado com o meu 31º aniversário natalício, pelo qual dou graças a Deus, que se vê assim antecipado por uns dias, quase como uma solenidade do Senhor que, na impossibilidade de ser celebrada na data justa, se transfere para o domingo.
Está ainda repleta de tempo porque o desafio mais óbvio da liturgia da palavra é à Vigilância e essa acontece no tempo, e poderá ser o tempo o seu maior e mais eficaz inimigo. O tempo que nos adormece, que nos acomoda, o tempo que nos faz duvidar que ainda seja possível, o tempo que passa e ao passar deixa marcas das ousadias não recompensadas e das proveitosas tibiezas.
“Se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão…” pode, não entre nós, mal ia… ,mas pode ser ouvido em tom de ameaça. A ameaça de que o Senhor, vindo, nos encontre a fazer o que não devemos, ou mais grave, a não fazer o que Ele nos ensinou e perdidos no meio de tantas solicitações deste mundo, tão facilmente disfarçáveis de zelo pastoral ou legítima realização pessoal. Ouvido como ameaça pode bem provocar um dos sentimentos capazes de despertar a vigilância, o medo.
O medo é de facto capaz de nos manter atentos, acordados, ao mesmo tempo que corrompe as razões da nossa espera e substitui o coração por um depósito de ressentimentos e frustrações, e os olhos por sensores que detectam o perigo e que de tão acostumados a tentar ver na escura noite confundem a luz da aurora com o inimigo, fazendo da espera a mais inútil de todas as empresas, como aconteceu com o povo da primeira aliança, capaz outrora do “sonho” que a primeira leitura nos apresenta, fruto do ministério profético e inspirado, de quem lê os sinais dos tempos e por isso, vê no tempo, o tempo que ainda não é. Mas de olhos cegos ao cumprimento da promessa que acontecia frente a si em Jesus Cristo.
Então que azeite podemos encontrar para as candeias que iluminam a noite da espera? Que combustível podemos nós gastar para manter esta pequena luz, fraca que mal nos permite ver onde por os pés mas suficiente para que os olhos não se esqueçam do que é ver, e quando o Senhor vier, O possam reconhecer.
Só há um, o amor. Para além do medo, só o amor é capaz de fazer vigiar. O amor que mantém a mãe acordada ao pé do filho ou o cuidador de vela ao pé do doente.
Um amor maior que nós mesmos, porque nos posiciona como vasos que recebem de Deus o seu amor e dele transbordam, o amor capaz de tudo, mesmo esperar contra toda a esperança, um amor que tem por medida o próprio Deus e que d’Ele é o mais perfeito símbolo porque de per si faz presente a realidade significada e com ela o todo.
É o amor que experimentamos do nosso Deus que nos permite ouvir como dito pela primeira vez e particularmente a nós, a disposição de Paulo que a segunda leitura nos troce “chegou a hora de nos levantarmos, porque a salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé.”
 Aquilo a que nos sinto convidados nesta celebração é a viver este amor em resposta ao amor que Deus é, um amor capaz de se sentir subestimado num dos mais geniais poemas escritos sobre ele, dado ao prelo por Vinícios de Moraes:
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
(…)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto [eu] dure.

E isto tudo, claro, enquanto é tempo!

domingo, 26 de setembro de 2010

É que não faltava mais nada...



Mais um peso... que coisa, neste tempo já se oferece de tudo, agora é um peso, um jugo. 
Outros vieram antes dele e prometeram derrubar os Romanos, qual David contra Golias, só que desta vez, o David ia de mãos atadas atrás das costas e o Golias de capacete... que é para fazer jus ao conceito de justiça de César.
Já nos prometeram um regresso glorioso do descendente de David... pois há-de vir... deve estar preso no trânsito...
Os Zelotas oferecem-nos aquilo que mais que agrada, se vivêssemos numa democracia, como os gregos, votava neles!

Programa  Eleitoral do Partido dos Zelotas:
  1. todos os dias há uma rebelião
  2. todos os dias matamos todos os soldados romanos que pudermos
  3. cada soldado romano vale 20 pontos
  4. cada centurião romano vale 40 pontos
  5. quem acumular num mês 500 pontos ou mais sobe na cadeia hierárquica.
  6. andar armado é um direito fundamental
  7. quem, neste regime, chegar aos 50 anos, morre de velho 
Nestes eu votava, quem vai à guerra dá e leva, havia de dar luta antes de me levarem com eles.
Agora um peso, deve ser este o que andou para aí a dizer que é preciso nascer outra vez e que o corpo dele é alimento e o sangue é bebida, há cada um...
Ora eu já carrego comigo mesmo, com o que os outros esperam de mim, com as minhas próprias expectativas, com o peso da idade, a saúde já não pesa muito, mas as doenças cada vez são mais, e ele ainda me vem oferecer um peso... mesmo que seja suave, não estou interessado...
Mas há ali tanta gente a olhar para ele como quem quer o que ele dá... porquê?
E ele parece estar a olhar para mim... a mim não me convence com essas técnicas de venda, já estou calejado a espantar vendedores de aspiradores e outros aldrabões...
Mas ele não pára de olha para mim.. e agora vem aí... ir-me embora dava a impressão que tinha medo, vou ficar aqui a olhar para o vazio, como se nem o visse...
Mas ele continua a vir na minha direcção... pronto agora já aqui está e vai falar-me ao ouvido... deve vir oferecer-me um desconto, devo levar dois pesos pelo preço de um, mas...
"-O que te ofereço é o peso do meu braço nos teus ombros, o peso de te saberes sempre acompanhado, sempre.
O que proponho é uma troca altamente desigual: partilhas comigo a tua vida, pequena, limitada, finita, com sofrimentos e tristezas, e eu, em troca partilho contigo a minha, eterna e plena.
O que me dizes?"
...mas então... assim não falta mais nada...
Mt 11, 28 - 30



sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O estalajadeiro...







Era uma vez um homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meia morto.
Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo.
Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dessa homem e, vendo-o, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-a sobre a sua própria montada.
Por esses dias, tinha eu uma estalagem que, sem grandes clientelas ia dando para viver. Um dia após outro sem grandes novidades, mas o pôr do sol é bonito todos os dias e é sempre igual, mudam as nuvens ou o resto mas o pôr do sol é sempre igual.
Uns dias os clientes eram bons, belos fatos, belas gorjetas, outros dias eram fraquitos, 5 num quarto de 3, e coisas que tais, mas íamos fechando os olhos e vivendo.
Comparado com outros, eu até nem era má pessoa. Até tinha ouvido dizer que, não muito longe dali, um colega meu de ofício, um estalajadeiro, tinha negado alojamento a uma grávida. Uma grávida tão grávida que, ao que consta, teve o filho nessa noite e lá no casebre que o pobre marido lhe arranjou para a recostar, a ela e ao menino que nasceu mesmo ali.
Parece que foi a aquecido por um burrinho e uma vaca… grande burro e grande vaca me saíram o estalajadeiro e a mulher que negaram dormida àquele casal, mas adiante.
…não era disso que eu estava a falar. Era da minha estalagem e do, pouco, que por lá se passava.
Houve um dia, ou melhor, uma noite, já bem tarde, não sei se pela primeira ou na segunda vigília da noite bateram à porta. Como por vezes o cão dormia encostado à porta e ao coçar as pulguitas batia na porta, blasfemei contra o cão e o malfadado dono (eu). Mas depois de perceber que a cadência era mais lenta que a da pata do boby em busca do parasita, atentei... e ouvi uma voz. Uma voz estranhamente educada e delicada que intercalava os chamamentos por quem lhe abrisse aporta, com palavras de conforto a quem o acompanhava.
Desci, era um samaritano... (azar, levantar-me a meio da noite para atender um samaritano... eles nem adoram em Jerusalém, diz-se que é Garizim, ou lá o que é...) mas então, também têm ossos e precisam de os descansar.
Por falar em ossos, conto-vos o estado em que estavam ossos do que ele trazia, se os tinha estava que nem os das galinhas de fricassé depois de o Boby se entreter com eles...
Mal, mas mal. Quando o samaritano lhe pegou para o levar para o quarto, eu ainda pensei em ajudar, mas de facto tive medo de ficar com algum pedaço na mão, e depois é que era o elas.
Acompanhei com os olhos, meio a fechar de sono e, depois de sossegarem, fui dormir o sono dos justos até de manhã.
Quando acordei, já nem me lembrava daqueles dois, apanhei um susto dos grandes, ao abrir o postigo e ver um burro a olhar para mim. Muito sério, com olhos de quem quer palha mas não lha dão. Era o burro do samaritano, salvo seja! Que me lembrou que tinha um dono e que o dono tinha um companheiro. “Como é que ele estaria?” pensei eu, enquanto fui buscar palha para o burro.
Ainda eu pensava nisso quando o samaritano, com o qual passava a simpatizar depois de ver o cuidado dele com a pessoa estropiada que trazia, apareceu e sem grandes explicações estendeu dois denários... dois denários... era mais dinheiro do que eu tinha visto em toda a minha vida, junto. Estaria a preparar-se para comprar o meu silêncio? Mas o meu silêncio não valia tanto, eu até sou do género: “mais vale estar calado e parecer parvo do que abrir a boca e confirmá-lo”. Ou então quem ele trazia morreu, e ele quer que eu faça o funeral… mas com dois denário enterro-o a ele á família toda, em túmulos de ouro. Já sei, veio morrer longe e, ele quer que repouse em paz na sua terra natal. Mas isso deve ser muito longe, ora eu perco-me daqui ao moinho… isto não vai resultar.
Estava eu tão entretido nos meus medos e pré-ocupações, que nem me apercebi do que ele dizia: "Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar."
Subi, para ver como estava a pessoa, à espera de a ver mais parecida com papas do que com gente, mas… qual não foi o meu espanto quando vi que o samaritano já tinha feito tudo, tinha tratado dela, tinha-lhe curado as feridas que o desamor a indiferença, a falta de auto confiança e outras agressões lhe tinham causado e eu só tive que o abraçar e dizer: “Ele ama-te muito.”
Ainda estou à espera que o samaritano volte. Porque do que ele me deu cresce e quanto mais gasto, mais tenho.
E ainda ele me dizia: - “quando voltar pago o que gastares a mais, ele há gente… excessos de amor!”
Lc 10, 29 - 37

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Porquê? Não! Como?

Um caminhante deu consigo num beco sem saída, frustrado e desanimado repetia incessantemente:
“-Porque cheguei a este beco? “
“-Porquê a mim? “
“-Porquê assim?”
“-Porquê agora?”
Vendo aproximar-se o que podia ser um aldeão local, o caminhante dirigiu-se a ele e com os olhos a pouco mais de um palmo dos do outro, e continuou a repetir os mesmos porquê’s.
O homem velho e calmo, respondeu com serenidade e afabilidade:
“-Não sei nem quero responder, não me interessa… nem a si. “
E depois de perceber que a irreverência da resposta captou a atenção do caminhante continuou:
“- O Senhor quer é sair daqui, o que quer é estar bem, o que quer é ser você e não isto em que se tornou. Para quê perder tempo a encontrar os porquê’s? Para quê gastar forças a esmiuçar todas as razões que o conduziram aqui? Para quê procurar culpas e culpados? Para quê procurar mais coisas com que carregar, se o que precisa é de ficar mais leve para se içar do fundo poço onde caiu?”
O caminhante fitava-o atento, com os lábios ainda a mexer por força do hábito de tantas horas repetir os mesmos porquê’s, como um carro que abranda, não por o travarem mas por deixarem de acelerar. Com os olhos fixos na boca do ancião, enrugada e côncava por falta de dentes, olhava-o como quem olha a fonte enquanto enche o cantil.
O Ancião continuou:
“-As respostas que precisa falam do como. Como é que aqui veio parar, em que cortadas se enganou, que conselhos (não) acatou, quais os caminhos que trilhou, que caminhos atalhou… do que se lembra que lhe ensine o caminho até onde esteve pela última vez certo que estava certo?”
“-Mas eu estou num beco sem saída… Murmurou o peregrino, num tom de voz quase imperceptível.”
“-Pois está, -respondeu o velho - e por isso não há escolha mais fácil, só há um caminho e é voltar para trás. Só há becos para quem não sabe voltar para trás… para quem não sabe reconhecer um erro e permanece num misto de obstinação em derrubar a parede e vergonha de reconhecer o erro.”
O Rosto do caminhante ia agora recuperando traços humanos e naturais no lugar dos de animal enjaulado que anteriormente ostentava.
“-Se o caminho é para trás, que seja, será caminho seu e o senhor o caminhante dele e serão juntos um só, um que lá está desde sempre, mas que será mais porque o andou, outro que, pode lá ter passado mil vezes, reparará em cada pormenor com olhar renovado, que de sentidos apurados levará consigo a mais importante parte do caminho: o sentido.
Podemos, por vezes, dar um passo a trás para ganharmos perspectiva... e olhar... e chegar mais longe.”
“-Como é que sabe isso tudo, um aldeão aqui numa terra de ninguém…" perguntou o agora atónito caminhante.
O velho irrompeu numa gargalhada, de improvável vivacidade para a sua idade, e depois, já a voltar-se para continuar o seu caminho, respondeu em tom de quem diz a coisa mais óbvia do mundo:
“-É que eu venho no caminho de regresso…”

terça-feira, 21 de setembro de 2010

“Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, depois vem e segue-me…” Mt 19, 21

Onde é que eu O vou encontrar, tenho que me despachar…
Mas porque é que juntei tanta tralha e agora, para ganhar a vida eterna, tenho que vender tudo, não posso simplesmente abandonar tudo…?... alguém havia de se encarregar de distribuir… mas Ele disse “dá aos pobres”, se não for eu a fazê-lo vai parar às mãos dos mesmos, os de sempre, os que não precisam.
O que é que Ele terá pensado de mim, nem me despedi, nem disse que ia já fazer o que Ele me disse. Se calhar ficou a pensar que eu não o quero seguir, mas quero “segui-lO-ei para onde vá”, mas antes tenho que vender tudo e dar aos pobres.
Fiquei com um semblante carregado a pensar onde ia encontrar alguém que me comprasse tudo depressa, mas tem que ser bem vendido, não pode ser ao desbarato, é para os pobres.
Podia dar tudo a um pobre… isso não, passaria pelo mesmo que eu quando descobrisse que Ele é o “caminho a verdade e a vida”… e descobriria, um dia todos vão saber! Vão saber, não porque lhes contem mas porque vão sentir que o vazio que viviam não se enche com coisas, casas, terras, rebanhos e denários, mas com Ele.
Agora tudo faz sentido, como há-de fazer um dia quando descobrirem que a terra gira à volta sol e os sábios deixarem de tentar perceber o caos dos movimentos dos planetas em torno da terra. A vida não gira em torno do ter, mas do ser. Assim, sim. Tudo tem o seu lugar, o ter, vivido com liberdade, o querer, vivido como desafio a ser mais, o poder, vivido como serviço. Estava tudo no meu coração, Ele “só” trouxe a código que precisava para descodificar o segredo: o amor. Como é que eu não descobri isto antes?
Não me disse: “- o que tu queres não presta!”. Sempre gostei de tesouros, os maiores, os mais duradoiros, aqueles mais raros e mais difíceis de conseguir, sempre pensei que Ele me obrigasse a deixar de ser quem sou, mas não.
“Ele não tira nada, pelo contrário, dá tudo”, apenas me mostrou uma forma melhor e mais intensa de “ter” o que eu tanto queria, já não um tesouro aqui, onde os ladrões roubam, a traça corrói, a ferrugem degrada e a especulação desvaloriza, mas no céu… é aí que vai estar o meu tesouro e eu com ele, porque “onde estiver o meu tesouro, aí estará o meu coração”…
Mt 19, 16 - 26

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

À ida, vão a chorar, levando as sementes; à volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas…


Abrir mão das certezas que temos… as sementes, as melhores, ou pelo menos as últimas, aquelas que podiam fazer pão… já hoje!
Porquê abrir mão delas? Porquê olhar para mais longe? Porque não o carpe diem? Porquê investir num amanhã que me exige que deite à terra… que mate… as sementes que sobraram da colheita anterior?
Porque sim!
“Semear é preciso, viver não é preciso” é o amanhã que dá sentido ao hoje, é a esperança, que me abre ao futuro, que me dá a verdadeira dimensão. É o amanhã que faz a diferença entre o adormecer e a morte, mesmo que morra.
É o amanhã que dá utilidade ao que aprendi ontem, é o amanhã que me faz abrir as mão e deixar cair as sementes, mesmo que regadas com as lágrimas da incerteza e do medo, porque se for para viver um dia de cada vez, que seja o amanhã, o hoje é demasiado pequeno, preciso de mais tempo para ser feliz…


Sl 126

Ovos de Galinha em Ninho de Águia

Leonardo Boff, um poderoso teólogo brasileiro da Libertação, mais famoso pela polémica que se gerou em torno da sua dissidência do que pelas suas muito boas  reflexões, usou uma parábola proferida por um político ganês, James Aggrey, para falar da condição humana. Apesar da riqueza e beleza dessa parábola, prefiro uma abordagem que me ajude a crescer pela positiva e não "contra qualquer coisa".
Assim, proponho a metáfora dos ovos de galinha em Ninho de águia, com a qual proponho expressar esta tensão em direcção à grandeza que nos motiva cada dia, mas também a incapacidade constante de a alcan­çar em definitivo.
Parabolemos...
Um agricultor, dono de uma produção de galinhas, resolveu fazer experiências. A umas galinhas deixou-as crescer sem contacto com nenhum outro ser vivo, fazendo delas bichos incapazes de relação e até de ser, muitas morriam de fome por não terem o que imitar como forma de aprendizagem. As que descobriam sozinhas como se alimentar, mor­riam, ao fim de pouco tempo, num estado semelhante à loucura.
A outras deu-as a criar a gatos, cães, vacas e outros mamíferos, experiência que se mostrou desastrosa, pois à primeira oportunidade, uns deglutiam os galináceos,
não restando a mais pequena pena para contar a história, outros, com a inabilidade e falta de graciosidade natural, pisavam-nos ou sentavam os seus corpulentos rabos sobre elas, e o fim era semelhante. Depois de muitas outras experiências, o produtor levou um ovo de galinha até à montanha mais alta onde o depositou num ninho de águia. Sem grandes esperanças que resultasse e desmotivado pela íngreme subida que teria que empreender, desistiu de acompanhar a experiência.
Cerca de um ano mais tarde, movido pela curiosidade e pelo desafio, voltou ao ninho onde tinha depositado o ovo e, para seu grande espanto, encontrou uma galinha saudável e desenvolvida, capaz de voar pouco mais do que as outras galinhas, mas com um enorme desejo de o fazer. Se por fora era uma galinha, com corpo de galinha, asas de galinha e cérebro de galinha, o seu coração era tão grande como o das águias suas irmãs de adopção.
O produtor concluiu que, se não é possível fazer uma galinha voar mais do que uns metros, é possível abrir-lhe horizontes para que ela deseje mais do que o que pode, fazendo-a assim maior do que ela. E, à pergunta sobre a crueldade de deixá-la desejar o que não pode alcançar, respondeu com os pouco metros a mais que ela voou e com o horizonte com que sonhou. No fim, parafraseando o poeta disse num tom orgulhoso: "Porque eu sou do tamanho do que vejo. E não, do tamanho da minha altura…"

Longe de casa...